Autor: Sue Branford
Publicado originalmente em 07 de março de 2016.
Na primeira de seis postagens, Sue Branford descreve uma cidade onde as promessas de um pródigo desenvolvimento têm se revelado um grande vazio. Em janeiro 2016, a jornalista britânica Sue Branford viajou ao Brasil pela Mongabay e pelo Latin America Bureau – LAB, para uma sequência de reportagens sobre a vida das comunidades ribeirinhas na Terra do Meio, no Pará, uma das áreas mais remotas da Amazônia. Sua primeira parada foi Altamira, no rio Xingu, próximo ao local onde está sendo construída a hidrelétrica de Belo Monte, a terceira maior do planeta. (A matéria original, em inglês, pode ser lida aqui: http://news.mongabay.com/2016/03/report-from-the-amazon-altamira-a-city-transformed-by-the-belo-monte-dam/) Adelia Marinho de Souza viu Altamira se transformar de uma pacata localidade às margens do rio Xingu, em uma cidade em crescimento frenético e desordenado. Foto: Natalia Guerrero. O quintal da casa de Adélia Marinho de Souza é um tesouro escondido. Você deixa para trás a calçada áspera e o mal cheiro das ruas por onde, a céu aberto, escorre o esgoto de Altamira, e, em poucos passos, depois de atravessar um pequeno terraço, tem a sensação de que chegou a um pequeno paraíso. Entre diversas árvores frutíferas – limão, acerola, graviola, pitanga, maracujá – transbordam ervas como malva grossa, “boa para a tosse”; hortelã-pimenta, para a digestão; babosa, “boa para problemas de pele”, e dezenas de outras. Há ainda galinhas, patos e alguns jabotis, todos disputando um pequeno espaço. Dona Adélia tem 73 anos de idade, 40 deles nessa casa, cultivando esse jardim. Antes disso, ela viveu no rio Iriri, o maior afluente do Xingu, em uma das áreas mais remotas da floresta amazônica, e para onde pretendo ir nesta viagem. Moto-táxis em Altamira. O cheiro da fumaça dos escapamentos e do esgoto a céu aberto permeia o ar da cidade, cuja população ultrapassou os 100 mil habitantes graças a construção da gigantesca e controversa barragem de Belo Monte. Foto: Natalia Guerrero. A sua vida exprime as grandes transformações pelas quais Altamira e essa parte da Amazônia têm passado nas últimas décadas. Durante a primeira metade do século XX, seus pais deixaram para trás a pobreza do Nordeste e se mudaram para cá para trabalhar nos seringais. Ela e seus nove irmãos nasceram na floresta. Dona Adélia se casou com o “patrão” local, um atravessador que comprava borracha dos seringueiros e lhes vendia alimentos, ferramentas e algum outro artigo de necessidades básicas. Seu marido, Benedito Batista da Gama, hoje com 83 anos e muito doente, era conhecido como um “bom patrão” – não abandonava os seringueiros num momento de necessidade e não deixava faltar medicamentos quando adoeciam. Mas ele não era um filantropo: durante seus melhores anos, ele se enriqueceu bastante, comercializando borracha, castanha-do-pará e peles de onça. O seu pequeno assistencialismo era também uma forma de manter fieis seus fornecedores, cerca de 150 famílias. Enquanto Benedito, por conta do seu trabalho, ficava a maior parte do tempo na floresta, Adélia mudou-se para Altamira para que seus quatro filhos – três meninas e um menino – pudessem ter acesso a uma educação escolar de melhor qualidade. O que ganhavam na floresta lhes permitia essas despesas. Hoje, todos os filhos gostam da vida urbana e confortável, mas Adélia segue a pensar na floresta e nos assegura, talvez, com certo idealismo: “Eu quero voltar para lá para morrer. Eu sonho com a paz de lá e os peixes abundantes”. Hoje, Altamira oferece pouca paz. Sua população inchou para mais de 100 mil habitantes nos últimos anos. Trabalhadores não qualificados vieram de todo o Brasil, homens em busca de trabalho na barragem ou nas proximidades de Belo Monte, de longe, a maior obra em curso no país. Esse “boom” populacional trouxe com ele os aumentos nos índices de criminalidade. O número de acidentes de trânsito também explodiu: segundo dados do Hospital Regional de Altamira, apenas entre 2013 e 2014, o número de pacientes vítimas desses acidentes mais que duplicou. A casa de Adélia foi recentemente invadida e os ladrões roubaram várias coisas, inclusive suas galinhas. E, para sua maior inquietação, ela pode, em breve, perder seu quintal – os engenheiros ligados à Belo Monte não sabem exatamente o nível a que poderão chegar as águas quando a hidrelétrica entrar em operação. Mais abaixo, na mesma rua, Thiago Pereira, outro antigo patrão de 83 anos, lembra, solitário, de uma Altamira ainda anterior a da chegada de Dona Adélia. “Eu tinha dez anos quando chegamos aqui em 1943”, diz ele. “Altamira era uma pequena vila de algumas dezenas de casas no meio da floresta fechada. Chegamos de barco, pelo rio Xingu. Não havia estradas. Foi tranquilo, tão tranquilo”. Thiago Pereira: “Altamira era uma pequena vila de algumas dezenas de casas no meio da floresta fechada [em 1943]. Chegamos de barco, pelo rio Xingu. Não havia estradas. Foi tranquilo, tão tranquilo”. Hoje, Altamira tem mais de 100 mil habitantes. Foto: Natalia Guerrero. A escala dessa mudança, de dimensões extraordinárias, não é incomum nesta parte do mundo. Ao longo do último meio século, a fronteira econômica do Brasil atingiu a região, atraindo um enorme contingente de pessoas em busca de oportunidade – posseiros, garimpeiros, operários da construção, além de madeireiros, fazendeiros e pecuaristas –, e a transformou drasticamente. Embora minha experiência na Amazônia não seja, nem de perto, tão profunda como a de Seu Thiago Pereira, partilhei algo do choque do velho patrão diante das grandes e rápidas transformações da Amazônia. Alguns anos atrás, revisitei Redenção, uma cidade localizada 600 quilômetros ao sul de Altamira. Eu não havia voltado para lá desde meados dos anos 1970, quando, com uma colega jornalista, pegamos carona em um caminhão que levava suprimentos para uma equipe de trabalho da abertura da rodovia Transamazônica. A estrada de terra pela qual viajamos era precária e, após cada grande chuva, o caminhão tinha que parar e esperar que os lamaçais nos quais a estrada se transformava secassem. Da Redenção daquela época, me lembro de o motorista que nos levava contar que lá havia um italiano excêntrico que tinha uma máquina de fazer sorvete movida a óleo diesel instalada em seu bar. A possibilidade de um sorvete e de uma cerveja gelada realmente nos animou! Redenção, contudo, acabou por se revelar uma vila de cerca de 15 barracos, todos feitos de mogno, facilmente reconhecido pelo seu tom avermelhado. E, infelizmente, não havia sorvete – o diesel do italiano havia acabado. No bar, vários homens com armas à cintura bebiam, no calor amazônico, cerveja quente. Na minha segunda visita, após mais de 40 anos, Redenção estava irreconhecível. Sua população tinha chegado a 80 mil pessoas. Havia ruas pavimentadas, eletricidade e um aeroporto. Eu não era capaz de, sequer, identificar em que ponto dessa cidade nova e próspera ficava a “velha Redenção” que eu conhecera. Não pude encontrar nenhum dos habitantes daquela época; um morador me contou que o italiano havia deixado a cidade alguns anos antes. De volta a Altamira, a cidade é, hoje, um local insalubre e desagradável. Não há transporte público. Os vários ônibus que voam por ruas mal pavimentadas estão, quase todos, a serviço da Norte Energia, a responsável pela hidrelétrica de Belo Monte, e transportam apenas seus trabalhadores. A população em geral locomove-se a pé, pegando caronas ou pagando por um moto-táxi – que não é barato, as viagens mais curtas custam, em média, 5 reais. Além do transporte, são muitas as queixas por conta das longas filas para se conseguir atendimento médico. Esgoto despejado a céu aberto em rua de Altamira. A Norte Energia, empresa responsável por Belo Monte, instalou um sistema de coleta de esgoto, mas se recusou a fazer as ligações entre as casas e a rede, insistindo que isso seria da competência da prefeitura. Foto: Natalia Guerrero. Altamira não deveria estar assim. Um dos compromissos assumidos conjuntamente pelo governo federal e pela Norte Energia junto ao Ibama, em troca de seu aval para a obra (as famosas condicionantes), era a implementação de grandes melhorias na infraestrutura urbana. Em um dossiê que documenta as falhas sociais da barragem de Belo Monte, o Instituto Socioambiental (ISA) questiona: “como um empreendimento em grande parte gerido pela União, financiado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), patrulhado pela Força Nacional e fiscalizado pelo Ibama não foi capaz de garantir que um único hospital fosse entregue ao longo dos três anos de pico das obras”? Outra falha grave foi quanto à instalação do saneamento básico em Altamira: a Norte Energia implementou – à força de uma ordem judicial – uma rede de coleta de esgoto na área urbana da cidade, mas se recusou a fazer a ligação entre o esgoto que sai das casas e a rede construída, insistindo que isso seria da competência da administração municipal. Na discussão sobre a quem cabe a responsabilidade dessas ligações, tem-se como resultado o esgoto correndo pelas ruas, a céu aberto, pela cidade toda. E eu conheço bem as consequências disso. Estive em Altamira há dois anos, e, em uma ocasião, chegava à casa onde estava hospedada no escuro – a iluminação pública, quando existe, é também precária. Assim que saí do carro, caí em uma vala cheia de esgoto. Meus anfitriões, aos quais eu seria apresentada naquele momento, tiveram que me levar por um corredor externo para o quintal dos fundos e me lavar com uma mangueira, para que, então, eu pudesse entrar na casa. Essa história circulou e fez muita gente rir. Altamira, no oeste paraense, estende-se ao longo da margem esquerda do rio Xingu. Foto: Igor Cavallini (GNU License v1.2). Com a primeira fase da obra da barragem de Belo Monte finalizada, a população de Altamira está diminuindo. Um vendedor de rua – de quem eu comprei meias de futebol para me proteger dos insetos na viagem que farei pela floresta – me disse que logo estaria partindo. “As vendas caíram”, reclamou. “Em breve vou me mudar pra Itaituba.” Itaituba é uma cidade às margens do rio Tapajós, que, segundo os projetos do governo federal, se tornará o principal centro de apoio para a construção de um megacomplexo de sete barragens planejadas para o Tapajós e seus afluentes. O governo espera que São Luiz do Tapajós, a primeira dessas barragens, entre em operação em 2019. Mas o vendedor de rua pode ter seus planos frustrados. Os índios Munduruku, que vivem ao longo do rio Tapajós, participaram de um protesto que ocupou o canteiro de obras de Belo Monte e viram, em primeira mão, o impacto da barragem sobre seus “parentes”, como chamam os índios que ali vivem. Depois de um longo estudo, Thais Santi, procuradora do Ministério Público Federal (MPF) em Altamira, concluiu que os danos causados por Belo Monte para “a organização, costumes, língua e tradições sociais” dos grupos indígenas era tão grave que tomaria proporções de um “etnocídio”. Quando falei com Santi, ela disse que a ação judicial que impetrou sobre esta questão – exigindo que a viabilidade da barragem fosse reavaliada em função de um possível etnocídio – foi a atuação mais importante dentre todo seu trabalho nos quatro anos em que está à frente da Procuradoria da República em Altamira. A ação ainda não foi julgada. Os Munduruku estão determinados a não sofrer um destino semelhante no Tapajós e montaram uma grande campanha para combater a pretensão das barragens planejadas para o seu rio. Mas o governo parece não se perturbar com a oposição indígena: em dezembro de 2015, o então ministro de Minas e Energia, Eduardo Braga, mencionou essas barragens como “prioridade” para o país e disse que todas as aprovações necessárias já haviam sido obtidas, exceto a da Funai. O ministro anunciou ainda que esperava que o leilão da hidrelétrica acontecesse no segundo semestre deste ano. Ainda assim, o vendedor de rua com quem falei pode ter uma longa espera pela frente. Mesmo que as barragens do rio Tapajós aconteçam, é quase certo que será um processo longo e minado de conflitos – principalmente depois dos muitos problemas sociais e ambientais advindos de Belo Monte. E foi assim o período de preparação para a viajem que farei pela bacia amazônica. Me juntei, em Altamira, a uma equipe de pesquisadores e estamos preparados para subir o rio Iriri. Pôr do sol no rio Xingu. A barragem de Belo Monte no Xingu, a proposta de barramento de São Luiz do Tapajós e as outras seis grandes barragens propostas para a bacia do Tapajós farão mais do que interferir gravemente no fluxo desses rios. Essas grandes obras trazem urbanização e problemas urbanos, como violência e pobreza, para áreas antes remotas. Foto: Analita Freitas Duarte (Creative Commons 4.0 International license). Adelia Marinho de Souza em seu quintal, o refúgio do mundo urbano que lhe devolve algo da serena Amazônia onde ela viveu. Foto: Natalia Guerrero.(Tradução: Maria Luíza Camargo)