Thursday, March 28, 2024
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Terra do Meio 3: O rio Iriri – conservação e seus custos

Na terceira de seis postagens, uma discussão sobre os problemas dos colonos (barragens, legislação ambiental, grileiros) e uma visita a uma fazenda “fantasma”.

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Na terceira de seis postagens, uma discussão sobre os problemas dos colonos (barragens, legislação ambiental, grileiros) e uma visita a uma fazenda “fantasma”. Tradução: Maria Luíza Camargo. A matéria original, em inglês, pode ser lida aqui no LAB ou aqui no Mongabay. Aqui, a primeira e a segunda postagem.  Publicado originalmente em inglês em 23 de março de 2016. Em janeiro de 2016, a jornalista britânica Sue Branford viajou ao Brasil pela Mongabay e pelo Latin America Bureau (LAB) para uma sequência de reportagens sobre a vida das comunidades na Terra do Meio, no Pará, uma das áreas mais remotas da Amazônia. Partindo de Altamira, ela viajou até o rio Iriri, na Estação Ecológica da Terra do Meio, para encontrar as famílias de beiradeiros que lá vivem.
  • Uma viagem de pesquisa sobe o rio Iriri para conversar com colonos que, surpreendentemente, estão dispostos a desistir de suas terras para a conclusão do processo de declaração da Terra Indígena Cachoeira Seca, desde que o governo cumpra as promessas de reassentamento e demais mitigações previstas em lei.
  • Na confluência com o rio Novo, uma pequena usina familiar de processamento de castanha-do-pará atua de forma legal e sustentável nos limites da Reserva Extrativista do Rio Iriri, uma unidade de conservação onde atividades econômicas de baixo impacto são permitidas. Ali, 20 famílias utilizam a floresta sem destruí-la.
  • A equipe de pesquisadores visita as ruínas do que foi a imensa fazenda de gado do e industrial Julio Vito Pentagna Guimarães, que agora volta a ser floresta. Ele era notório por sua brutalidade e suspeito de ter cometido uma das maiores grilagens da Amazônia. Sobre a imensa porção de terras da qual ele se dizia dono, estão, hoje, duas unidades de conservação e ele enfrenta acusações civis e criminais.
O rio Iriri na bacia amazônica, local do porto Maribel, da usina sustentável de processamento de castanha e da fazenda fantasma, insustentável, de Julio Vito Pentagna Guimarães. Foto: Mauricio Torres.


Maribel é um pequeno porto situado no rio Iriri, na Terra Indígena Cachoeira Seca, na margem oposta à da Estação Ecológica (Esec) da Terra do Meio. A vila consiste em uma praça central cercada por bares pintados de cores brilhantes: azul, rosa, roxo, turquesa, verde. Cada estabelecimento tem uma grande varanda de palha, onde as pessoas se reúnem para comer, conversar, beber e, depois de encerrado o expediente, amarrar suas redes. Ao cair da noite, a conversa entre os moradores e nossa equipe de pesquisa vem fácil. O assunto é a crescente escassez de peixes, causada, segundo eles, pelo aumento da demanda em Altamira, cidade que teve um boom populacional com o afluxo de trabalhadores provocado pela obra da gigantesca hidrelétrica de Belo Monte. Eles explicam que mais pescadores vêm e vão o tempo todo, e avançam sobre áreas de pesca usadas tradicionalmente por outras famílias, algo que não acontecia antigamente. Outro tema recorrente são as restrições impostas pelos órgãos responsáveis pela conservação ambiental, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Segundo nossos interlocutores, as autoridades não vão atrás dos verdadeiros criminosos ambientais, os madeireiros ilegais, os grileiros, os grandes pecuaristas e os pescadores clandestinos, que violam a legislação e varrem o rio com as suas redes. “É apenas contra nós, que não podemos nos defender”, se queixam. “Nós não podemos levar carne de caça para levar para os parentes em Altamira.” Quando pressionados, contudo, os homens admitem que a situação tem melhorado ao longo dos últimos dois anos, embora o monitoramento constante ainda os pressione.
O biólogo Ricardo Scoles, que explicou porque raramente se vê animais de grande porte ao longo dos rios da Amazônia e se vê muito os pequenos, tais como mosquitos. Foto: Mauricio Torres.
A conversa então se volta para a Terra Indígena Cachoeira Seca e as reivindicações dos não indígenas que, há décadas, habitam o local. Trata-se de um sério conflito de dupla destinação territorial pelo governo federal ainda na década de 1980: enquanto o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) destinou a área à colonização e assentou famílias camponesas no local, o órgão indigenista, a Fundação Nacional do Índio (Funai), iniciou o processo de reconhecimento de 750 mil hectares como de usufruto exclusivo do povo Arara. Com coerência, os moradores não mostram ressentimento para com os índios, o que é incomum nesse tipo de conflito, e acabam por reconhecer o direito dos indígenas à terra. Eles ainda acrescentam que estão dispostos a se mudar, mas, com toda razão, querem que o governo respeite a lei e os reassente em lotes de iguais condições e lhes pague uma indenização pelas casas e colheitas que perderem. O governo acaba de concluir o longo processo de identificar os ocupantes legítimos, que ocuparam a terra com boa-fé, e aqueles que invadiram a área cientes de se tratar de uma terra indígena. Esses segundos não teriam direito de serem indenizados e realocados. O longo processo de declaração da terra indígena está formalmente encerrado desde sua homologação em abril último, mas as autoridades parecem perdidas em relação a como lidar com a extrusão e a realocação digna das famílias não indígenas que ocupam a área de boa-fé. Esse é um passo fundamental no reconhecimento dos direitos originários do povo Arara. Ninguém ainda foi removido da área indígena, mas, a todo o tempo, ouve-se que todos o serão. Essa situação, que se prolonga há 30 anos, gera muita incerteza e instabilidade para ambos os lados. “É muito ruim não saber o que está acontecendo”, queixa-se um colono.
Castanheira, a árvore gigante de castanha-do-pará. Foto: Wikipedia.
Atamos nossas redes em uma das varandas e tivemos uma noite de repouso. Na manhã seguinte, a equipe seguiu rio acima em nossa voadeira (uma lancha de alumínio com motor de popa). O Iriri está baixo porque as chuvas apenas começaram – elas vieram muito tarde este ano – e nosso piloto precisa escolher seu caminho com cuidado entre as pedras do leito do rio. O sol rompe as nuvens e vemos garças, araras vermelhas e azuis e um ocasional mergulhão voando ao longo da margem. De vez em quando flagramos um jacaré tomando sol nas rochas expostas. Surpreendentemente, vemos poucos dos grandes animais. Pergunto a Ricardo Scoles, um dos biólogos, o porquê disso. Ele explica que os grandes animais são difíceis de ver, em parte, por conta da densa e frondosa floresta. Outro fator tem a ver com o clima dos trópicos: sem estações bem definidas, não há a súbita explosão de disponibilidade de alimento (grama, sementes, frutas) como acontece a cada primavera na zona temperada, por isso não há grande aumento na procriação e, portanto, não há animais amontoados banqueteando-se ao longo da margem do rio. A floresta amazônica possui uma dinâmica anual mais regular. Mas, acrescenta que, enquanto nós estamos vendo apenas alguns vertebrados, a Amazônia tem um grande número de invertebrados (pequenos animais como formigas e mosquitos) que se mostram em todos os momentos para todos os visitantes.

Uma próspera pequena empresa familiar

Em breve vamos parar em uma usina de beneficiamento de castanha-do-pará situada no encontro dos rios Iriri e Novo. Aqui estão pessoas que vivem e trabalham na Reserva Extrativista (Resex) do Rio Iriri, uma unidade de conservação destinada especialmente a ser ocupada por comunidades tradicionais e onde se incentivam as atividades extrativistas. O apoio financeiro de duas organizações não governamentais (ONG) – Instituto Socioambiental (ISA) e Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) – permitiu que cerca de 20 famílias criassem uma pequena usina de beneficiamento de castanha-do-pará.
Famílias ribeirinhas preparam a castanha-do-pará em sua usina na Resex do Rio Iriri. Foto: Natalia Guerrero.
As famílias recolhem os ouriços depois de terem caído das enormes castanheiras, os quebram e tiram as castanhas e, depois de transportá-las, às vezes por grandes distâncias, até a usina, elas são postas para ferver em uma gigantesca panela de pressão para deixá-las menos duras e facilitar a quebra e a retirada das nozes. Uma vez removida a casca, as castanhas são secadas e embaladas. O trabalho é intenso, mas mais fácil do que costumava ser: agora, graças à cooperação das ONGs e de fundos estatais voltados para esse público e para atividades com esse perfil, os ribeirinhos têm algum equipamento básico que pode mantê-los mais competitivos. As famílias gerenciam todo o processo e não estão mais reféns do regatão – o intermediário –, o que lhes permite obter cerca de 30 por cento a mais na venda das castanhas, além de pagar menos pelas mercadorias que compram. Os moradores também estão começando a processar outros produtos florestais, como óleo e farinha de babaçu, por exemplo. Vendo seu sucesso, outros grupos familiares da região estão reproduzindo o seu sistema. Uma situação onde todos ganham.
Triagem da castanha-do-pará com vista para o rio Iriri. Foto: Natalia Guerrero.
Novamente a bordo da nossa voadeira, fomos pegos por uma forte tempestade amazônica. Avistamos um porto em ruínas e que um dia foi parte de uma grande fazenda de gado chamada Juvilândia, assim batizada por seu proprietário, Júlio Vito Pentagna Guimarães, um empresário do Sudeste do país. Ele estabeleceu a sua extensão de terras nos anos 1970, um momento em que o governo militar oferecia generoso apoio financeiro para os industriais do centro-sul instalarem atividades agropecuárias na Amazônia. O governo militar, na lógica do medo da “ameaça comunista” em tempos de Guerra Fria, se baseou na alegação farsesca de que a Amazônia era “uma terra sem homens” que precisava ser “ocupada” em nome da segurança nacional. Na época, algumas centenas de guerrilheiros de esquerda tentavam desestabilizar o governo militar com ações armadas espetaculares – incluindo o sequestro do embaixador dos Estados Unidos. Um grupo ainda menor (talvez pouco mais de 70 pessoas) também havia tentado criar um foco guerrilheiro rural ao longo do rio Araguaia, um afluente do Amazonas, a leste do Xingu. O esforço mal havia tomado forma, os generais do governo reagiram. Eles queriam a Amazônia para os tidos como “verdadeiros brasileiros”, ou seja, os membros da classe média que haviam apoiado o golpe militar de 1964. Mesmo naquela época, era claro para muitos que a ideia não fazia sentido. A Amazônia não era um vazio, continha, ao contrário, numerosos grupos indígenas e milhares de pequenas comunidades tradicionais, como os beiradeiros que estávamos indo visitar rio acima. A densidade populacional era baixa, mas era coerente com a capacidade de suporte do frágil ecossistema. Os ambientalistas já alertavam na década de 1970 que o solo sob a exuberante floresta era, em grande parte, infértil e que o sistema de corte e queima, se aplicado à pecuária, não iria sustentá-la por mais do que alguns anos.
Preparo da castanha-do-pará para o mercado: um negócio sustentável, cujo trabalho ficou mais fácil com as máquinas simples fornecidas com o apoio do governo. Foto: Natalia Guerrero.
Robert Goodland, o primeiro ecologista do Banco Mundial, ficou tão horrorizado com as fazendas da Amazônia, que escreveu um livro intitulado “Floresta amazônica: de inferno verde a deserto vermelho?” (original em inglês: Amazon Jungle: Green Hell to Red Desert?). Mas uma mudança de atitudes toma muito tempo: conheci Goodland em 2012, pouco antes de sua morte, e ele estava cheio de dúvidas quanto a se, juntando-se com o “outro lado”, como ele disse para descrever a sua decisão de deixar de ser ecologista independente e ir trabalhar para o Banco Mundial, ele havia conseguido alguma mudança.

Visita a uma fazenda “fantasma”

Oportunistas, como Julio Vito – que pouco sabem e se importam menos ainda com sustentabilidade – reconhecem uma boa oportunidade para ganhar dinheiro quando a veem. Ele, então, conseguiu grandes incentivos fiscais para criar uma fazenda de 840 mil hectares às margens do rio Iriri.
Mapa do rio Iriri indicando o porto Maribel e a Juvilândia, agora parte da Esec da Terra do Meio. Mapa: Mauricio Torres.
Quando chegou na área, em 1979, ele encontrou – como era de se esperar – cerca de 250 pessoas já instaladas, a maioria extraindo borracha. Os beiradeiros mais antigos ainda recordam a violência brutal com a qual Julio Vito os expulsou. Entre as narrativas que rondam Julio Vito, está o episódio conhecido como “massacre do Morro do Galego”, quando outros grileiros, também muito empoderados, tentaram se apossar de parte das terras públicas dominadas pelo industrial. Contam que quase duas dezenas de homens foram mortos e tiveram seus corpos queimados. Desde o início, Julio Vito tinha títulos legítimos para apenas uma fração da terra que reivindicava. Sua ganância parecia não ter limites e ele começou a estender seu império. Sempre usando títulos falsificados, chegou a reclamar uma enorme área de 1.365.667 hectares. Em seguida, no início dos anos 1990, teve um golpe de sorte: cresceu a procura por mogno no mercado mundial e seu latifúndio tinha muito dessa madeira. Julio Vito assinou, então, um contrato com Osmar Ferreira, conhecido como o “Rei do Mogno” e, provavelmente, um dos maiores comerciantes de madeira ilegal do planeta. Especula-se que Júlio Vito tenha ganhado muito dinheiro nessas transações. Porém, para azar de Júlio Vito, uma grilagem de tal extensão de terras é difícil de esconder e manter sob um governo democrático. Em 1997, sua fábrica faliu e, antes mesmo disso, ele já havia parado de investir na fazenda Juvilândia. Além disso, quando o governo anunciou uma enxurrada de novas unidades de conservação em 2005, seu latifúndio ficou dentro dos limites de duas delas, a Resex do Rio Iriri, de uso exclusivo dos ribeirinhos, e a Esec da Terra do Meio, onde não é permitida nenhuma atividade econômica. Iniciou-se, então, uma investigação sobre como Julio Vito havia conseguido obter uma fatia tão grande da Amazônia. Em 2008, o Ministério Público Federal (MPF) iniciou os procedimentos legais contra ele para recuperar as áreas griladas. Era, segundo o MPF, um dos maiores casos de grilagem já registrados na Amazônia. Embora Julio Vito esteja enfrentando acusações nos tribunais civil e criminal, ele ainda está livre e supostamente vivendo no estado do Rio de Janeiro.
A viagem de voadeira rio acima. O rio Iriri estava muito baixo em janeiro, as chuvas chegaram tarde este ano, possivelmente, devido a um intenso El Niño que provocou uma grande seca na Amazônia e graves incêndios. Foto: Mauricio Torres.
Não resisti em fazer uma visita à sede abandonada da fazenda. O piloto me avisou para ter cuidado, o gado abandonado tornou-se selvagem e é regularmente atacado por onças. Três de nós subimos as margens do rio, seguimos por uma longa trilha fechada e encontramos as ruínas. A atmosfera é estranha: no calor intenso, centenas de borboletas brancas e amarelas pairaram sobre as telhas quebradas que faziam parte da varanda do que, um dia, fora a casa sede da fazenda. Parece-nos outro espetacular mau uso da floresta, seguindo os passos equivocados de Henry Ford, na década de 1920, quando a montadora tentou estabelecer Fordlândia, uma plantação de seringueiras fadada ao fracasso; ou quando o empresário norte-americano Daniel K. Ludwig, na década de 1970, lançou o Projeto Jari, extraordinariamente ambicioso, mas que fracassou no esforço de plantar espécies de árvores não nativas. Uma e outra vez, forasteiros em busca de fortuna tentando dobrar o ecossistema às suas vontades; uma e outra vez, eles pagaram pela arrogância diante das regras inflexíveis da floresta. De volta à voadeira, seguimos pelo Iriri para a aldeia indígena de Tukaya, do povo Xipaya, onde estava programada sua festa anual. Nossa equipe de pesquisa esperava encontrar lá alguns dos beiradeiros com quem precisava falar para completar sua missão.

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