Friday, April 26, 2024
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Amazon: Did Dorothy Stang die for nothing?

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Renewed conflict over illegal logging in south of Pará

Because of the international outrage following the death of the US nun Dorothy Stang in 2005, the gunmen, and the landowners who ordered her assassination, were brought to justice. It was seen as a rare victory both for human rights and for the kind of authentic Dorothy StangDorothy Stangsustainable development that Sister Dorothy passionately defended. But how real were the advances? The journalist Natália Guerrero, who has been to the region, has published a disturbing account of the latest developments. Her article, published in the Brazilian magazine Caros Amigos, is reproduced in full (in Portuguese) below.

For those of you who don’t read Portuguese, here is a summary.

Loggers, forced to reduce their illegal activities by the furore after Sister Dorothy’s death, are back on the offensive in the rural district of Anapu in the south of the state of Pará in the Brazilian Amazon. Peasant families are having to patrol their land to prevent invasions, and activists are being threatened. To understand what is happening, we need to look at what has been going on in the region since Sister Dorothy’s death in 2005.

Unusually for the Brazilian Amazon, two landowners – Vitalmiro Bastos de Moura, known as Bida, and Regivaldo Pereira Galvão – were sentenced to 30-year imprisonments for ordering Sister Dorothy’s assassination. But another investigation was started and never completed. It was looking into the considerable body of evidence that suggested that a much larger group of landowners was involved in the crime. Some members of this group are linked to a notorious corruption scandal involving the misuse of tax breaks under the government’s SUDAM programme in the early years of this century. As a result of this scandal, former Senator Jader Barbalho received a prison sentence in 2002, and Roseana Sarney, the present governor of Maranhão, failed in her bid to become the PMDB’s presidential candidate in the 2002 elections. One of those under investigation is Laudelino Délio Fernandes Neto, currently the vice-mayor of the town of Anapu and the owner of one the town’s biggest logging operations.

Ariovaldo Umbelino de Oliveira, a geography lecturer from the University of São Paulo, says that, besides failing to look at the broader support network for the assassination, the investigation failed in another way. “It [the investigation] left the wound bleeding. Those who killed and those who ordered the killing went to jail, but the land question, which was the underlying cause of the violence, wasn’t tackled at all.” In other words, what is required to end violence in the region are measures to sort out land rights and to guarantee land tenure to the small and powerless.

Sister Dorothy was a passionate defender of the newly created unit for land reform – the Sustainable Development Project (Projeto de Desenvolvimento Sustentável, PDS). The idea behind the PDS, a unit specially created for the Amazon, is to combine small-Sister Dorothy's bodySister Dorothy’s bodyscale peasant agriculture with forest conservation. The PDS was created after years of struggle, and has always been hated by loggers and landowners. There are four PDSs in the rural district of Anapu. Two, grouped together and known as Esperança, are home to some 200 families. Esperança covers 23,176 hectares.

Landowners and loggers (who often work together) have long waged a particularly vicious campaign against Esperança. This is not only because of the plentiful timber on the land but also because the PDS makes it difficult for them to gain access to the Indigenous Reserve of Trincheira-Bacajá. Indeed, Juan Doblas, a geophysicist who visited the region recently, says that if it were not for Esperança the indigenous reserve would be experiencing a “severe process of degradation”.

Sister Dorothy fought long and hard for the creation of the PDSs. She was insistent that they should not only exist on paper but also be provided with proper land titles, technical assistance and rural credits. People in the region still remember how she would undertake long bus journeys to Belém, Brasília, wherever she needed to go to put pressure on the authorities. She often took with her a small sleeping mat in case she had to sleep outside a government office.

Today the logger/landowner mafia is invading Esperança once again. They often have the support of the local branch of the trade union of rural workers which, to the disappointment of many activists, has been co-opted by the powerful. The peasant families have
been forced to patrol their land to try and stop the loggers getting in. In September 2009 hundreds of settlers blockaded the road to prevent lorries laden with timber from leaving. In January 2011, families blockaded the road again, demanding that the authorities investigate illegal occupations in the settlement and set up two police watch-towers to control entry into the settlement. Rural trade unionists, in alliance with the loggers, organised a counter-action, stopping traffic for one day on the Transamazônica Highway.

Many of those who are carrying on Dorothy’s work, such as Antonio José Ferreria, who runs the office in Anapu of INCRA (the National Institute of Colonisation and Land Reform), the Catholic priest José Maro Lopes de Souza, and the nun Jane Dwyer, are receiving death threats.

Ariovaldo Umbelino de Oliveira believes that the problem cannot be seen simply as the absence of the state in the region. He says that in the frontier regions of Brazil “the state was built, not on the Republican logic of obeying the law, but on the logic of disobeying the law”. This has created situations, as in Anapu and in Amazonia as a whole, in which the function of the state is exclusively to favour the interests of the powerful. He says that this is why it is so difficult to get the state to fulfil one of its basic functions – to enforce the law.

 
Caros Amigos
Brasil Real

Anapu, cidade paraense que atraiu olhares do mundo pelo assassinato da missionária estadunidense Dorothy Stang, em 2005, testemunha nova escalada de tensões envolvendo ocupações irregulares e extração ilegal de madeira nos projetos de assentamento da região.

Por Natália Guerrero

“Vai-te embora, que tá na hora…” Reza o ditado que quem avisa amigo é, mas Antonio José Ferreira aprendeu a duvidar. O chefe do posto avançado do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em Anapu sabe que o zelo aparente desse tipo de recado pode travestir a mais comum das formas de ameaça. E, nos últimos tempos, Antonio tem recebido um bom número delas, motivo pelo qual conduz seus trabalhos, desde 11 de outubro, com presença da Polícia Federal e da Força Nacional de Segurança Pública.

O servidor do Incra sempre soube que conflitos o aguardavam quando para lá foi enviado, em 2010. Em um lugar onde o controle da terra e de seus recursos é tão disputado, representar o órgão estatal fundiário por excelência pode equivaler a administrar um barril de pólvora.

Afinal, Anapu não ganhou notoriedade pelo vistoso sombreado de suas florestas, mas pelos desfechos trágicos que permeiam seu histórico de conflitos, notadamente o assassinato de irmã Dorothy Stang, em 2005. Conflitos comuns a muitas cidades amazônicas, e que envolvem extração ilegal de madeira, grilagem de terras públicas, escândalos políticos e criminalização de lideranças e movimentos sociais.

Seis anos se passaram, mas pouco mudou no quadro que teria resultado na morte de Dorothy. Prova disso é a escalada de tensões que vem se desenhando desde o final de 2010, quando assentados começaram a denunciar mais incisivamente as investidas sobre suas terras e florestas, provocando reações também mais radicais entre os que vinham se beneficiando com essas atividades criminosas.

É nesse meio de campo que atua Antonio. “Hoje, a cada hora chega uma notícia, ‘fulano tá falando isso, ciclano tá ameaçando, dizendo que tá na hora de tu sair’. Até minha família, eles vinham falar com a minha esposa: ‘olha, não anda muito com teu marido por aí, pede para ele ir embora, porque eles já mataram a Dorothy, e o que é um simples servidor?”

Novos velhos interesses

Em 12 de fevereiro de 2005, Dorothy Mae Stang foi morta numa vicinal do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Esperança. Antes de cair sob os seis tiros que a vitimaram, a religiosa ligada à Congregação de Notre Dame passara mais de 20 anos atuando em defesa do direito à terra dos pequenos agricultores da região. Para isso, denunciava, incansável, a grilagem de terras públicas, perpetrada por interessados na abertura de fazendas e no roubo de madeira.

Entre os alvos das denúncias da missionária, figuravam os fazendeiros Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, e Regivaldo Pereira Galvão, conhecido como Taradão, ambos condenados a 30 anos de prisão, acusados de contratar os pistoleiros que assassinaram a missionária. Embora tenham sido os únicos indiciados como mandantes do crime, evidências colhidas à época apontaram para um consórcio muito mais amplo de fazendeiros da região interessados em financiar a execução da religiosa. Em depoimento registrado um mês antes de morrer, a irmã nomeava vários grileiros, detalhando seus crimes de desmatamento e assédio de colonos. Invocando a esperança de que a presença dos órgãos de Estado pusesse termo às ilegalidades, Dorothy concluía: “Neste ano de 2005, nós vamos cantar diferente. Nós não vamos cantar a miséria, pistolagem, gente morrendo, gente encapuzada atacando nossas casas. Eu sinto hoje aqui um novo viver, que vocês estão se aliando conosco e que nós vamos ter melhores condições”.

A investigação sobre outros patrocinadores do crime, até hoje nunca concluída, implicava empresários locais, alguns deles ligados ao escândalo de desvio de incentivos fiscais da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) na década de 2000. Foram ao menos R$ 132 milhões desviados de projetos financiados pelo governo. A divulgação do esquema levou à prisão do ex-senador Jader Barbalho, em 2002, bem como inviabilizou a candidatura à presidência da República da atual governadora do estado do Maranhão, Roseana Sarney.

Um dos que respondem a processo por suspeita de envolvimento no esquema que ficou conhecido como “Máfia da Sudam”, e sobre quem recaem suspeitas de também tomar parte no consórcio que executou Dorothy, é Laudelino Délio Fernandes Neto, atual vice-prefeito de Anapu e dono de uma das maiores madeireiras da cidade.

“São os mesmos atores”, avalia o padre José Amaro Lopes de Sousa, pároco de Santa Luzia e coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em Anapu. Padre Amaro, como é conhecido, ombreou a luta com Dorothy e afirma que o município vive hoje, tal como se deu em 2005, um quadro em que a violência espreita quem ameaça os interesses econômicos dos grandes, em defesa do direito dos pequenos. “Em 2005, tinha os projetos da Sudam, e esses ‘sudanzeiros’ estavam sendo investigados. Esse pessoal, com dinheiro do governo, estava comprando todo o município. Então a Dorothy teve essa ideia brilhante de criar o PDS e aí o governo mordeu a isca, no bom sentido da palavra. E deu na morte dela”, relata.

Floresta de trabalho

A ideia a que o padre se refere significava, de fato, empecilhos para grileiros e madeireiros. O PDS é uma modalidade de assentamento de reforma agrária gestada no seio do movimento social do qual Dorothy fazia parte, e que propunha levar em conta as especificidades da ocupação camponesa da terra na Amazônia, de modo a consorciar a pequena agricultura com a conservação da floresta. Oficializado pelo Incra em 1999, e posteriormente regulamentado em 2002, o PDS aparece nas normativas do

órgão como uma modalidade “de interesse social e ecológico, destinada às populações que baseiam sua subsistência no extrativismo, na agricultura familiar e em outras atividades de baixo impacto ambiental”.

Em 2004, quatro PDSs surgiam em Anapu, conhecidos na região como agrupados em dois: Esperança e Virola-Jatobá. Mas é no primeiro, idealizado para receber cerca de 200 famílias em uma área de 23.175,90 hectares, onde se concentram os maiores conflitos, passados e recentes, em torno da retirada ilegal de madeira.

Juan Doblas, geofísico que visitou recentemente a área, lembra que o interesse de madeireiros no PDS Esperança se explicaria não apenas por suas próprias reservas de floresta, mas principalmente por sua posição geográfica privilegiada em relação a algumas das matas mais preservadas da região, situadas na Terra Indígena Trincheira-Bacajá, contígua ao assentamento. “A posição estratégica do PDS Esperança, situado entre as madeireiras de Anapu e os estoques de madeira nobre da TI Trincheira-Bacajá,

tem sido um fator determinante na concentração de conflitos no assentamento. Pode-se dizer que quem controlar o assentamento terá controle da exploração, ilegal, claro, dos recursos dessa região da TI”, explica. O especialista em análise ambiental ressalva que, pela análise de imagens em alta resolução dessa área, ainda não há sinais de exploração na TI, e que isso poderia ser fruto da resistência conduzida no último ano pelos assentados. Sem ela, na opinião de Doblas, “provavelmente, além das terras do assentamento, as terras indígenas estariam sofrendo um processo acelerado de depredação, à semelhança de outras terras indígenas na região”.

A tragédia de 2005 chamou a atenção tanto para o modelo de PDS quanto para as ameaças que pairavam sobre o projeto Esperança, especificamente. No mesmo ano, o governo federal reagiu anunciando rigor nas investigações do assassinato da irmã e o envio de reforço de segurança no município. Mas isso teria sido muito pouco. É a opinião do geógrafo e professor da Universidade de São Paulo, Ariovaldo Umbelino de Oliveira, para quem o Estado só atuou realmente no que se refere a apurar o crime. “Ele não atuou para resolver o problema do ordenamento fundiário. Ele deixou a ferida sangrando. Os que mataram e os que mandaram matar vão para a cadeia, mas a questão da terra, que é a origem da violência, não foi sequer mexida”, critica.

Incra: omissão histórica

A análise do professor da USP é compartilhada com as lideranças que acompanham Anapu desde a época de Dorothy. Ainda é viva a lembrança de como a missionária, por entender como fundamental a implementação efetiva do PDS, com acompanhamento técnico, créditos e regularização fundiária, recorria insistentemente ao Incra, sem grande sucesso. Por vezes, conta-se, a religiosa se deslocava até a sede do Incra em Belém portando consigo um pequeno colchão para eventualmente lá pernoitar, até ser atendida.

“Ela ficava muito visível, porque ela ia procurar, ia a Brasília, ia a Belém, ia a Altamira. Todas as coisas que aconteciam na questão agrária aqui do município, a culpada era a Dorothy”, relata Padre Amaro, que não poupa críticas ao papel desempenhado pelo órgão nos conflitos fundiários envolvendo o PDS: “Eu acuso que quem é responsável pela morte da Dorothy é o Incra, se o Incra tivesse colocado em prática seu trabalho, ela não teria sido morta”.

Para a irmã Jane Dwyer, que atua em Anapu há décadas pela Congregação de Notre Dame, a omissão do Incra no que se refere ao PDS Esperança trouxe questões delicadas, já que abriu espaço para ocupações irregulares do assentamento, em que se misturam desde pequenos agricultores com vocação para assentados até especuladores e empresários interessados na madeira. “Esse povo está ali há muitos anos. E o Incra ausente por completo. São comerciantes, doutores, políticos, funcionários públicos, madeireiros, fazendeiros que entraram [nos assentamentos] e arrumaram muitos lotes para criar gado, ou para ter madeira”, conta a irmã.

Parte da perpetuação dos conflitos em Anapu se encontraria, portanto, nessa ocupação desordenada de lotes, o que motivou a demanda ao Incra, em 2010, de uma rigorosa revisão ocupacional dos assentamentos da região, a começar pelo PDS Esperança. Trata-se de um procedimento que visa a supervisão da situação ocupacional

no interior de assentamentos e retomada de parcelas ocupadas irregularmente e sua destinação a agricultores com perfil para reforma agrária. Foi nesse contexto que o engenheiro agrônomo Antonio José Ferreira assumiu a tarefa de reverter uma omissão histórica do órgão, atraindo para si ameaças dos que almejavam seguir ampliando suas explorações da área, eventualmente com apoio de ocupantes irregulares.

O presidente do Incra, Celso Lisboa, destaca a importância da revisão ocupacional como parte da implementação do PDS e também como passo necessário para o combate de atividades criminosas, com destaque para a extração ilegal de madeira. “Nós estamos agora fazendo um trabalho forte de revisão ocupacional nos assentamentos, porque a gente sabe que tem ocupações irregulares, e esses ocupantes é que operam as irregularidades dentro dos assentamentos, que é extração ilegal de madeira, ameaças a outras pessoas, inclusive até a servidores do Incra”.

Deslocamentos políticos

Irmã Jane assinala que não foi só a omissão do Incra a única responsável pela intensificação da retirada de madeira ilegal e acirramento dos conflitos no PDS Esperança. As eleições de 2008 teriam tido um papel importante nesse quadro de virada.

A composição da chapa vencedora para a prefeitura de Anapu surpreendeu fortemente a muitos: alinhados no pleito estavam Francisco de Assis Sousa, o Chiquinho do PT, candidato a prefeito, e Laudelino Délio Fernandes Neto, como seu vice. O choque advinha do fato de Chiquinho ter desenhado grande parte de sua trajetória política ao lado de Dorothy e das entidades que a sustentavam, combatendo justamente atividades reputadas ao grupo do qual Délio fazia parte.

Dom Erwin Krautler, bispo da prelazia do Xingu e presidente do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), diz que, se em 2004, tivessem lhe anunciado tal articulação eleitoral, simplesmente não acreditaria. “Isso é piada de mau gosto, eu teria dito naquela hora”. Para o bispo, era muito claro que se estava diante de defensores de interesses completamente opostos. A surpreendente candidatura não teria sido o único deslocamento político do gênero na região após 2008. Tanto o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTR) de Anapu quanto a Associação de Moradores do PDS Esperança também viram assumir gestões de grupos alinhados à prefeitura e críticos à atuação da CPT, da Congregação e de outras lideranças que se mantiveram fiéis ao combate rigoroso à exploração madeireira.

Josildo Carlos, atual vice-presidente do STTR de Anapu, é um dos que hoje encabeçam críticas póstumas à missionária. “A irmã Dorothy também não era essa santa, não. Quem causava conflito era ela. Perdeu a confiança do povo, aí gerou o que gerou. E o Chiquinho hoje está contra ela, porque eles estavam cegos, hoje que eles viram a realidade”, diz. Embora Josildo afirme ter um dia apoiado a atuação da religiosa, reportagens da época mostram o sindicalista em ferrenhos protestos contra a criação dos PDSs por ela defendidos.

Escalada de 2011

Assim, conforme diminuem os holofotes sobre Anapu após a morte de Dorothy, as tentativas de invasão para roubo de madeira no assentamento se intensificam, cabendo cada vez mais aos assentados do PDS Esperança assumir as ações de controle e fiscalização de suas terras. O trânsito de veículos carregados de madeira ilegal vai castigando as vicinais do assentamento e conflitos voltam a eclodir. Em setembro de 2009, centenas de assentados se mobilizam para bloquear a saída dos caminhões, apreendendo a madeira roubada até a chegada do Ibama. Entre os donos da carga apreendida, figuraria justamente o vice-prefeito de Anapu.

A tensão se estende sobre o ano de 2010, com mais roubos e mais empates. Em janeiro de 2011, assentados do PDS Esperança bloqueiam por diversos dias uma das vias de acesso do assentamento para o trânsito de caminhões de madeira, demandando a presença do Incra e apresentando duas principais reivindicações ao órgão: a conclusão do processo de revisão ocupacional no assentamento, e a construção de duas guaritas para coibir a extração ilegal de madeira. O protesto foi amplamente noticiado, e não tardou para que o STTR de Anapu encabeçasse uma reação, com o fechamento por um dia da Transamazônica.

Diante da iminência de um conflito de maiores proporções, foi realizada, em 25 de janeiro de 2011, uma audiência pública promovida pela Comissão Nacional de Combate à Violência no Campo, órgão do governo federal ligado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário.

Insegurança

Após a audiência pública, e com o acatamento da demanda dos assentados do PDS Esperança, de construção das guaritas, os grupos mobilizados pelo sindicato manifestaram seu profundo descontentamento, e multiplicaram-se denúncias e ameaças a lideranças dos assentados, aos servidores do Incra, à CPT e às irmãs da Congregação de Notre Dame.

Em ofício endereçado à presidência do Incra, de agosto de 2011, o STTR cobra especificamente a saída dos servidores, que estariam fazendo “uma atuação de intervenção, desarticulação e desmoralização das associações e STTR perante os agricultores”. Em setembro é a vez do prefeito de Anapu se dirigir à mesma instituição, por

meio de ofício em que tece diversas denúncias ao trabalho dos servidores, e conclui afirmando que “a revolta que está sendo criada por estes servidores, entre os posseiros e assentados, coloca em risco a sua própria integridade física e nós, que somos autoridade deste município, não podemos nos responsabilizar por sua segurança”.

Diante dessas últimas manifestações, o procurador da República Claúdio Terre do Amaral solicitou abertura de inquérito policial para averiguação das denúncias, bem como requisitou o envio do contingente da PF, com base no ofício do prefeito, para que o Incra pudesse concluir os trabalhos da revisão em segurança. Segundo o representante do MPF, a guarita tem sido um importante elemento no combate ao desmatamento.

O delegado de Anapu, Melquisedeque Ribeiro, também avalia que houve inibição de entrada de madeireiros no PDS após a construção da guarita. Segundo Ribeiro, o controle no assentamento teria propiciado, por exemplo, a prisão em flagrante de José Avelino Siqueira, conhecido como Junior da Semente, em junho deste ano, quando tentava sair do PDS com um carregamento de madeira ilegal.

Ainda assim, o vice-presidente do STTR avalia que o controle não atende aos interesses dos trabalhadores e acusa a CPT de usar a construção para favorecer alguns madeireiros em detrimento de outros. “A guarita é um transtorno”, diz Josildo. Irmã Jane rebate as acusações: “Todo mundo sabe que isso é mentira. Na casa das irmãs, não tem uma conversa com madeireira, o povo sabe quem é a gente”. A religiosa critica ainda a atuação do sindicato, a quem acusa de espalhar boatos e causar temor entre os pequenos agricultores, que não teriam nada a temer com a revisão ocupacional ou com as guaritas.

No final de setembro, em reunião realizada em Altamira, Josildo ainda pleiteava o afastamento dos servidores do Incra e a demolição da guarita controlada pelos assentados para o impedimento de roubo de madeiras. Face às negativas do órgão, declarou em tom ameaçador: “E aí que nós vamos tomar as nossas providências, conversar

com a base nossa, e vamos acatar o que os agricultores decidirem. Se os agricultores decidirem que vai radicalizar, aí o jeito é acatar, como liderança nós temos que fazer isso, é o que os agricultores querem. Tentamos evitar várias vezes. Radicalizar é o jeito, não tem saída”.

De cabeça para baixo

Algumas lideranças, como irmã Jane, analisam que a situação é ainda mais grave se se considerar que Anapu desfrutaria de relativas vantagens em relação a outras regiões, uma vez que os eventos que ali se passam costumam gerar visibilidade singular, por conta da repercussão internacional da morte de Dorothy, bem como por ali terem sido gestados os princípios do modelo de PDS.

O procurador-chefe da República no Pará, Ubiratan Cazzeta, também vê em Anapu um conflito comum a diversos municípios amazônicos, que tributa a uma histórica ausência ou ineficiência do Estado na região. “Há anos que essa tensão existe lá, e há anos que a presença do Estado é insuficiente. Sendo bem objetivo, se nós não tivermos uma efetiva implementação do PDS, a situação de pressão sobre eles vai manter um quadro que a gente conhece em diversos outros locais da Amazônia: você anuncia uma política pública e não faz com que essa política realmente chegue”. Para o procurador, a implementação do PDS compreende desde a chegada dos créditos de reforma agrária aos assentados até o delineamento de uma visão objetiva do que seja o modelo de sustentabilidade almejado para o assentamento. “E é nessa parte de implementação que os nossos planos falham. Não falo apenas em Anapu, mas quando você fala em Resex, de um modo geral nessas unidades, sejam de conservação, seja esse modelo do PDS. É você ter um plano claro, plano de manejo verdadeiro, manejo no sentido de o que vou fazer nessa área, quais as fontes de recurso pra eu implementar isso, pra onde eu vou vender, qual é a expectativa de renda que eu posso efetivamente trabalhar. É nessa implementação da ideia que a gente acaba tropeçando de quando em quando”.

Para o professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira, o problema é ainda mais profundo, e não poderia ser caracterizado apenas como resultado da ausência do Estado. O que nós temos no Brasil é que a constituição do Estado nas áreas por onde a fronteira foi passando não se fez pela lógica republicana do cumprimento da lei, mas se fez pela lógica do descumprimento da lei, portanto o Estado foi constituído de cabeça para baixo”, analisa. Isso geraria contextos, como os de Anapu e da Amazônia em geral, em que a efetivação de políticas públicas para a maioria da população esbarraria numa estrutura estatal ligada desde o início ao favorecimento dos interesses econômicos dos grandes, o que explicaria a dificuldade de reivindicar nem que seja apenas o cumprimento da legislação prevista. “Quem vai ocupar o cargo de compor os partidos políticos, ser eleito vereador, prefeitos nessas áreas e lutar pela constituição dos municípios e dos novos estados, são exatamente aqueles que foram descumpridores da lei”.

O professor identifica outro elemento que se interpõe entre os camponeses e seus pleitos: a recente lógica adesista do movimento sindical rural ao Estado. “Esse é um problema sério, também Na realidade, o movimento sindical rural tem feito essa política de composição com o Estado para continuar recebendo algumas migalhas das políticas compensatórias. Em outras palavras, a estrutura sindical se afastou da base social, que ela representa. Não quer dizer que em alguns municípios não tenha um sindicato rural atuante, mas ele não é a regra”, aponta.

A marcha segue

No que se refere à atuação de movimentos sociais, padre Amaro faz uma ponderação. O religioso reconhece que os conflitos do município são uma realidade de toda a Amazônia, e que a comoção em torno da morte de Dorothy fez com que Anapu se destacasse em meio a essa realidade, mas ressalva que a singularidade de sua região se deve também à força de reivindicação dos agricultores que estão na linha de frente do combate às atividades predatórias, bem como de movimentos sociais como a CPT, que representa.

É também essa forte organização popular uma das razões que motivam irmã Jane a levar adiante a luta de Dorothy, mesmo com as ameaças que sofre. “Quem mantém a esperança é o povo. A gente seria covarde de sair no meio dessa história. A gente sabe que tem ameaças, e a gente toma cuidado, mas mostrar que a gente tem medo no meio do povo seria uma afronta, o povo defende a gente”, explica.

Antonio, do Incra, o novo alvo de uma velha ira, reafirma seu compromisso de concluir o trabalho que começou em Anapu, ainda que reconheça nisso uma tarefa para além de suas atribuições, e que avança onde outros já teriam desistido. “Não é a regra no órgão, infelizmente. Os servidores honestos, quando chega no nível de situação como essa em Anapu, geralmente recuam. Mas a gente está lá porque tem um compromisso com as famílias que estão lá no assentamento, e com as lideranças que a gente entende que são honestas. Se a gente não se posiciona, eles dizem: ‘ah, estamos sós, é só nós mesmos’. E a gente tem uma possibilidade de tentar fazer desta vez o que é certo. Ou, pelo menos não atrapalhar. Como em outros tempos”.

Natália Guerrero é jornalista.

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